segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Beagles, ganância e consumo

"Que ingenuidade, que pobreza de espírito, dizer que os animais são máquinas privadas de conhecimento e sentimento, que procedem sempre da mesma maneira, que nada aprendem, nada aperfeiçoam! Será porque falo que julgas que tenho sentimento, memória, ideias? Pois bem, calo-me. Vês-me entrar em casa aflito, procurar um papel com inquietude, abrir a escrivaninha, onde me lembra tê-lo guardado, encontrá-lo, lê-lo com alegria. Percebes que experimentei os sentimentos de aflição e prazer, que tenho memória e conhecimento.Vê com os mesmos olhos esse cão que perdeu o amo e procura-o por toda parte com ganidos dolorosos, entra em casa agitado, inquieto, desce e sobe e vai de aposento em aposento e enfim encontra no gabinete o ente amado, a quem manifesta sua alegria pela ternura dos ladridos, com saltos e carícias. Bárbaros agarram esse cão, que tão prodigiosamente vence o homem em amizade, pregam-no em cima de uma mesa e dissecam-no vivo para mostrarem-te suas veias mesentéricas. Descobres nele todos os mesmos órgãos de sentimentos de que te gabas. Responde-me maquinista, teria a natureza entrosado nesse animal todos os órgãos do sentimento sem objectivo algum? Terá nervos para ser insensível? Não inquines à natureza tão impertinente contradição."

[Voltaire, Dicionário Filosófico]


Diante do buzz que o resgate dos beagles do Instituto Royal gerou, e sendo totalmente favorável à atitude dos ativistas, muito começou a ser discutido nas redes sociais.

A mim, chegou um artigo interessante, que serviu de base para reflexões sobre o porquê desta atitude ser sim legítima na minha opinião e de algumas pessoas que conheço: http://easttowestskincare.com/2012/01/09/esclarecimentos-sobre-os-testes-em-animais-realizados-pela-industria-cosmetica/

A partir disto, vamos antes de tudo pensar no homem:
- o que existe há bilhões de anos, está em degradação acentuada, progressiva e acelerada graças a uma espécie de 10 mil anos que só sabe consumir, "evoluir", consumir mais e se "proliferar" para consumir mais ainda; -1 ponto
- é a espécie que mata ursos, tigres e alces (colocar um herbívoro é importante nesse exemplo, senão chega o outro e fala que "se não matarmos essas feras, elas nos matam", simples assim) não para se alimentar, mas para decorar motéis e quartos de chalés, como forma de status e poder. Também é a espécie que mata golfinhos para saudar deuses (China) ou para tomar poderosos afrodisíacos (sem comprovação científica) (Norte brasileiro) para uma noite de amor; -1 ponto
- é a espécie que bebe ensandecidamente, ouve músicas de 2 caras num palco e espera vibrantemente por um show de uma "sub-espécie", totalmente inferior, deplorável, indigna de qualquer respeito e consideração que vai carregar uma outra sub-espécie igualmente deplorável (só que bem mais) que está lá para disputar o mérito de quem é mais PODEROSO naquela noite em domar essa besta e, assim, ganhar um prêmio. E, novamente, ter uma bela noite de amor com fêmeas de almas flamejantes em busca desse poder e virilidade toda. Cruzando o Atlântico, o cenário piora um pouquinho, porque o "poder" é atribuído morbidamente à uma superexposição do sofrimento dessa besta animal, até ela morrer e, o toureiro, ter uma noite de amor; -2 pontos
- é a espécie que consome tudo, todos e qualquer coisa para sua mera satisfação fútil (esquece a pirâmide de Maslow... Foda-se Maslow e sua base com as necessidades básicas);
- é a espécie que, diferentemente do João-de-barro, que constroi sua casinha com um certo padrão estético instintivo se utilizando de folhagens e galhos secos, opta por derrubar todas essas casinhas, os galhos, os caules e as raízes das áreas verdes do João-de-barro, do sagui, do tamanduá para fazer um bloquinho de notas e uma bela cadeira para acomodar seus glúteos fartos durante um jantar que contempla, como prato, alguns primos dos atuais desabrigados;
Melhor parar os exemplos por aqui, senão a dramatização tomará proporções da história do Bambi, pelo Walt Disney.
Meu ponto de vista aqui é sobre o consumo insano por parte do ser humano.
Remontando o século passado, o blá blá blá de Revolução Industrial e pós-guerra, vamos chegar na revolução tenológica num planeta de mais de 7 bilhões de ocupantes dessa superespécie (enquanto existem outras que não tem mais do que 30 exemplares vivos TENTANDO sobreviver), que não possui nenhum outro predador (na verdade possui, mas o homem usa uma trapaça chamada lógica e racionalidade) senão ela mesma, que possui doutrinadores magnânimos espalhados pelos 4 cantos do mundo que defendem centenas de teorias espirituais, divinas e metafísicas (menos naturais, na maioria) onde somos senhores absolutos de tudo e todos e todo o resto da existência deve NOS servir.
Legal. Aí vc olha esse pequeno número e pensa como é muita gente para pouco planeta. Pensa na quantidade de João-de-barro sem casa e de touros agonizantes para que alguns homens e mulheres se entretenham - ora, os animais abatidos pela caça selvagem também agonizam, concordo, mas pelo menos não é em vão, pelo menos é para GARANTIR (repito, GA-RAN-TIR) a sobrevivência da espécie do predador - e de batons, delineadores, desodorantes e outras infinidades de produtos consumidos e inventados a cada ano para o... CONSUMO dessa megapopulação.
O teste feito no ratinho ontem, tendo terminado após uma conclusão, não vai demandar outras cobaias para que o creme anti-sinais entre em escala de produção, mas um novo anti-sinais surgirá amanhã, encomendado pela equipe de Marketing, Pesquisa e Desenvolvimento da multinacional que repensou nos pés-de-galinhas de 4 dedos, em vez de 3, e enxergou uma grande oportunidade de mercado a ser explorado, com possíveis retornos altos sobre esse investimento, consequente expansão dos negócios para produzir mais e atingir novos públicos com outras tantas "NECESSIDADES".
O artigo citado, bem anterior ao fato do resgate dos beagles é, de fato, coerente quando pensamos apenas na nossa existência, cotidiano, hábitos e esquecemos os preços altos que outras espécies vivas estão pagando.
O discurso "eco-chato" incomoda muita gente ainda que não percebe nitidamente esses impactos na vida. Talvez nem seus filhos e nem seus netos, como sempre é dito desde a criação da Eco 92, percebam, já que esses podem se tornar mais e mais reféns do consumo indiscriminado e sua "necessidade".
As empresas podem até estar tentando abolir esses tipos de testes, mas quanto aos testes em animais, partindo dessa massa bruta reflexiva exposta acima, e se lembrarmos que todos os avanços tecnológicos existiram graças à "revoluções" de algum tipo? A última, que acho bem expressiva, é a da indústria fonográfica, a chegada do Napster e do MP3, a guerra contra a pirataria, a guerra contra a ganância das gravadoras e a consequente tecnologia que permite a praticamente todos terem acesso a uma infinidade de músicas pagando menos da metade de um CD, de forma lícita e ética, mesmo porque torna a arte e a cultura realmente democratizada.
Invadir um instituto de pesquisa para resgatar cães usados como cobaia é muito legítimo, uma vez que essa "sub-espécie" é a única que mais ganhou respeito dos homens nos últimos séculos. Os cães possuem um poder de persuasão midiática estrondoso, assim como crianças (por que vc acha que comerciais adoram usá-los sempre?) e talvez possam servir como "porta-vozes" dos camundongos de laboratórios e tantos outros. Essa invasão permite um impacto profundo na opinião pública, a qual passa a refletir, repercutir e, até mesmo, boicotar as empresas que realizam esses tipos de testes. Esse é um primeiro passo para que os bolsos comecem a ser sentidos pelas empresas e estas invistam com mais "vontade" em tecnologias que permitam a abolição de testes em animais.
O grande problema de tamanho atraso na nossa sociedade está ainda nas mãos do poder, tanto religioso como econômico. O religioso porque considera escravizar indiscriminadamente as outras espécies como forma legítima em favor da preservação da espécie humana, a qual cresce exponencialmente, sem controle e freios porque acredita-se que é o papel do homem crescer e se multiplicar. Nem mesmo a morte natural pode servir como equilíbrio para o excesso, uma vez que essas outras espécies testadas em laboratório servem, inclusive, para aumentar a longevidade da espécie humana. Quanto o poder econômico... Na verdade não sei porque separei poder econômico do religioso, já que são farinha do mesmíssimo saco, mas talvez tenha sido para refletir mais especificamente sobre os interesses políticos e corporativos de lucros para reinvestir em crescimento, que serão reinvestidos em novos públicos, os quais consumirão mais e gerarão mais lucro, e crescerão em maior quantidade e farão parte de uma bolha, talvez a maior de todas já criada pelo homem e que poderá reverter em sua própria extinção um dia.

Concluindo...
Neste artigo tentei traduzir um ponto de vista um pouco fora do que mais se viu no fato, que foi a penalização por parte da opinião pública por se tratarem de beagles sendo usados como cobaias. Inclusive, foi um fato que já vinha sendo discutido em petições públicas e por pessoas taxadas como "eco-chatas" nas redes sociais, mas que só ganhou relevância por ter sido algo realizado "in loco", com cobertura da imprensa, já que se tratavam de beagles, raça tão bonitinha e fofinha que além de alegrar, também "decora" algumas residências, já que agrega status dentre aquelas orelhinhas caídas. Também tentei refletir que a questão não é apenas se preocupar que, apesar de os animais não terem racionalidade (o que é mesmo racionalidade, né?) e nem alma, segundo as religiões mais "pops", eles possuem um sistema nervoso central capaz de provocar dores e incômodos igualmente intensos aos que somos capazes de sentir, mas também que as justificativas para isso tudo poderiam ser um pouco mais éticas ou amparadas por um equilíbrio.
Por fim, muitos vão perguntar: "então, vc acha que devemos voltar à idade da pedra?". Eu responderia: "não é para tanto se colocarmos limitadores nas nossas futilidades, mas como eu não acredito que isso vá acontecer, eu sinceramente preferiria ser um Neanderthal inofensivo, do que me sentir parte de um câncer ambiental".